sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Abrindo as portas

Autora: Adriana Netto Parentoni

Ela tinha acabado de chegar à cidade, depois de três horas e meia dirigindo, seu carro estava com pouco menos de meio tanque, o que para ela sempre significou tanque quase vazio. Estava exausta mas, mesmo assim, quis abastecer o carro antes de procurar um lugar para ficar. A frentista muito solícita perguntou: Boa tarde! O que a senhora deseja? E ela, prática como sempre e naturalmente impaciente, já tinha aberto o tanque do carro, mas antes que tivesse tempo de responder entre álcool e gasolina, embora seu carro fosse um flex, ouviu a frentista dizer: Sabe moça, aqui a gente cuida do carro dos outros como se fosse da gente, vejo que a senhora não é daqui...e a moça pensava, “claro que não minha filha, basta ler na placa para ver de onde venho!!! Só quero que encha esse tanque e me deixe ir embora, não tenho tempo a perder, tenho muita coisa para resolver ainda hoje, mas a boa educação não lhe permitia falar assim com uma ilustre desconhecida, portanto tudo isso permaneceu apenas no pensamento dela.”

A bomba de gasolina estava livre, a porta do tanque também, mas a frentista permanecia ao lado da motorista e completava dizendo: “Nossa, viajou muito, quer que lave os vidros, isso tá uma sujeira só?” A motorista mais sem paciência falou, não senhora, obrigada, quero mesmo é abastecer... “Pois é senhora, é que vejo que sua placa não é daqui...a senhora veio para o final de semana ou para mais tempo?” A motorista se sentiu quase afrontada e em outras circunstâncias teria certamente dito que isso não te diz respeito minha filha mas, como estava em novo território, por assim dizer, manteve a calma e prosseguiu, “pois é sou de BH, como pode ver na placa do meu carro...mas, por favor, será que poderia abastecer com gasolina comum...”

A frentista parou junto à porta da motorista e apoiada com um pé no estribo do carro, que era asssim uma espécie de jipe moderno, ponderou, “veja bem minha senhora, o carro pode ser a álcool ou gasolina, a senhora está certa que quer mesmo gasolina, porque aqui a gente coloca as duas coisas e se a senhora não sabe tem gente até que mistura, sabe como? “ A motorista já com muito pouca paciência pensando em finalizar a conversa com uma semi-sentença do tipo: minha filha por favor, coloque 40 litros de gasolina e pronto, retrucou, “é mesmo, e misturam como?” Tentando dar uma última chance para a frentista tão conversada. “Ah, não sei se a senhora sabe, mas aqui o povo bebe muito! O carnaval aqui é uma loucura, a senhora precisa ver!!! Tem gente dormindo nas ruas, nos becos...na verdade ninguém consegue dormir de noite com o barulho...o mercado velho chega trepidar...as ruas nem passa mais gente, só carro bacana que chega  e nem num sabe prá onde ir...as igrejas agora até fecham, porque é tanta gente que pode até estragar as paróquias, uma coisa horrorosa, sem falar nos que fazem aquelas coisas lá dentro, a senhora sabe né? Aquelas coisa do demo...parece que tá todo mundo possuído...a praça da matriz então, mesmo uma semana despois, a prefeitura tenta lavar com um monte de caminhões de água esguichada bem forte, mas tudo fede xixi mesmo mais de um mês depois, no beco então, nossa senhora, nem dá pra gente passar sem fazer vômito...uma coisa terrível...mas a senhora sabe como é que é... a gente acaba que gosta e precisa do turismo aqui, ele é importante prá gente...meus meninos, mais os da minha cunhada trabalha tudo de guia mirim nas paróquia...recebe inté bolsa...nesta época, eu tenho mais que o dobro de serviço...sem contar  que os forasteiros adoram ir para as cachoeiras...aí não sei se a senhora sabe, mas nosso posto vende gelo...um gelo muito dos bão, para gelar a cerveja é uma beleza...todo mundo vem aqui colocar gelo nos isopor que eles leva para as cachoeiras...mas a senhora sabe que nem num pode levar bebida para o Biribiri??? A senhora gosta das cachoeira???”

A motorista antes extremamente apressada, que queria apenas abastecer seu carro e calibrar os pneus, agora pensava, “o que será que ela pode ter mais a me dizer antes de colocar a maldita mangueira de gasolina no meu tanque e enchê-lo??? Eu não acredito que, depois de dirigir quase quatro horas, ela não consegue fazer uma coisa tão simples... ela é paga para isso!!! Pode até não saber disso, mas eu não tenho tempo a perder falando com a frentista de um posto onde nunca parei...vou falar de novo o que quero pela última vez, pois, provavelmente, ela pode não ter me ouvido.” Assim a motorista repetiu,” moça, por favor, poderia completar o tanque de gasolina por favor, pois estou com muita pressa?” E secretamente pensava que não haveria mais nada a ser dito antes que a frentista colocasse a mangueira no tanque do seu carro.

Novamente nada aconteceu. A frentista permanecia imóvel, a seu lado, e como ela pensava que não tinha mais tempo a perder no lugar disparou: “Escuta minha filha, tem ou não gasolina neste posto???”A frentista bem humorada abriu um largo sorriso e disse “tem sim, dona, só falta a senhora falar qual que vai querer pois tem a comum e a aditivada, que a senhora deve de saber que é bem mais cara...e depois os vidro tão muito sujo se quiser nóis lava eles também!!!Se a senhora continuá a dirigi assim, pode até sofrê acidente, porque num vai inchergá nada, ainda mais naquele lá de trás, que ta uma coisa!!!”

“Não, ela pensava, é demais para um dia só...fora de brincadeira, deve ter mais de meia hora que estava ali parada e já aprendia tudo que precisava saber sobre o carnaval e outras coisas desse lugar, mas o detalhe é que ela nunca perguntou nada disso!...Será que esse povo aqui não sabe que a gente tem tempo curto para fazer as coisas e que não tem tempo nenhum a perder?? Muito menos falando com gente estranha...vê lá se vou falar de onde venho, quanto tempo que vou ficar ou muito menos onde vou me hospedar...E secretamente ela pensou, eu juro, se ela me fizer mais uma pergunta, por menor que seja, eu prometo que arranco meu carro daqui mesmo de tanque aberto...e respirando fundo, resolveu pedir novamente à moça, dizendo, por favor, pode abastecer meu carro, vai ser gasolina comum mesmo...”

Abrindo um sorriso único, num rosto queimado de sol, a frentista se apresentou, “pois não, minha senhora, eu me chamo Rosa e posso sim abastecer o seu carro prá já...ainda bem que a senhora escolheu...” A motorista então pensou, “pronto, consegui, agora são mais 10 minutos e estarei livre...”A frentista colocou a mangueira dentro do tanque e voltou para junto da motorista. Esta sem entender nada lhe perguntou: “ mas a senhora não deveria ficar junto à mangueira...pode vazar combustível e manchar minha pintura, meu carro é novinho!..”.e ela pacientemente respondeu, “não senhora, nunca vazou comigo...as bomba aqui é tudo tomática...nois sabe direitinho quando elas enche, sabe como???Elas faz um clic que num deu ainda não...Além do mais, o vapor que sai lá de dentro é tóxico, nóis num pode ficar lá respirando aquilo não, nóis tem que se cuidar...eu inté passo filtro solárico no rosto pro mode de num aumentá essas minhas mancha aqui, a senhora ta vendo...a gente é simpres mais num pode discuidá da image “

Foi assim que a motorista entendeu onde realmente estava, afinal, aquela cidade tinha um tempo próprio, que jamais seria o mesmo do dela. Percebeu que tinha parado ali justamente para desacelerar sua vida... para finalmente viver... e, felizmente, a Rosa lhe avisou que seu pneu traseiro estava muito baixo, precisaria entrar na borracharia...que ficava logo ali, do outro lado da rua.

A motorista finalmente desceu do carro, deu um forte abraço na frentista até então desconhecida, para lhe agradecer por tudo e ouviu a última e decisiva frase: “Sabe moça, nóis aqui presta um serviço bão mesmo, mais ocê tá precisando de um bom banho, de levar seu cachorro prá fazer xixi que ela tá feito doido pulando aí de trás...precisa de um homi de verdade pra dirigir prá senhora e prá trocar seus pneu, mais num se preocupa não,  que nóis resolve isso rapidim...!!! é só abrir as portas” E assim, seu coração se abriu a um mundo realmente novo, novas pessoas, hábitos e um tempo que daquele dia em diante passou a ser praticamente infinito.

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